27/10/06

DIA NÃO





Há dias em que tenho a certeza de que me enganei.
Pensei que tinha vocação, mas não.

Dias em que me ouço falar
e tenho pena dos alunos, por terem de me aturar.
Vejo na cara deles um tédio descomunal
e não os censuro: acho perfeitamente normal.
O tom da minha voz, monocórdico e irritante,
mas, mais do que isso, incrivelmente entediante;
a matéria, chata e comprida como um grande peixe espada,
a sensação de que, do que estou a dizer, não se aproveita mesmo nada...

tudo isto me dá vontade de chorar, de raiva e frustração
e de ter finalmente a coragem para mudar de profissão!






26/10/06

Solilóquio





Nem sempre temos algo significativo para dizer.

Melhor: nem todos os momentos para dizer algo significativo são oportunos.

Melhor: quem decide se o que dizemos é significativo são os que nos ouvem ou lêem.

Ou: nem sempre sabemos se o que dizemos é significativo para alguém.

Melhor: tenho receio de não ter nada de significativo para dizer.

Afinal: n
em sempre temos algo significativo para dizer.



23/10/06

VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA




O que é que eu hei-de escrever no blog...? - perguntou-me ela.

Pareceu-me ouvir-me a mim própria.

O que havemos de escrever? E para que havemos de escrever?

Necessidade de abrir uma janela do nosso interior para o mundo,
de verbalizar o indizível.
Vontade de desabafar, de converter em palavras um qualquer grito,
ou vários.
De domar a raiva, chamando nomes ao que sentimos.
De iludir a impotência.
De traduzir, num rasgo de lucidez, a nossa disfarçada demência.





22/10/06

CHUVA

A chuva veio para ficar.
Nunca apetece sair de casa, mas, uma vez lá fora, nem me importo de dar o mesmo passeio do costume, sentindo as gotas que o vento atira para a minha cara.
Só não gosto de pisar caracóis, o que sempre acontece nestes dias. Fico a imaginar a sua agonia posterior, nos longos minutos em que ainda sobrevivem debaixo da casca esmigalhada.
Cá dentro, a casa fica mais confortável nestes dias, pelo simples facto de estarmos no seu interior. Fazer chá torna-se num dos rituais imprescindíveis. Olhar a chuva também.
Hesito entre pôr as plantas no chão, ao abrigo do vento, ou deixá-las à mercê dos elementos, para que sobreponham um pouco de cor ao cinzento do fundo.

19/10/06

UM ANO DEPOIS

Faz hoje um ano que fui operada à coluna. Apesar das dores com que acordei e do desconforto de estar num hospital (ainda que privado), foi uma boa experiência.
Curei-me praticamente de um dia para o outro, a verdade é mesmo essa, graças a um excelente neurocurirgião. Não me esquecerei do milagre que senti realizar-se, ao obedecer à sua ordem: "quando tiverem passado vinte e quatro horas desde a operação, levante-se e ande".
É curioso que relembre com nostalgia aquilo que se passou há um ano.
Ou talvez não.
Porque tudo está bem quando acaba bem!

18/10/06

QUEM QUER IR ÀS COMPRAS?

Quem quer entrar numa loja cheia de roupa da moda, quando sabe à partida que apenas dois dos 750 itens à venda lhe assentam bem?

Quem quer ter uma pessoa com um sorriso forçado (ou já sem se esforçar por sorrir) a andar atrás de si e a perguntar se precisa de ajuda para decidir o que quer?

Quem quer despir-se e vestir-se cinco ou seis vezes, dentro de um cubículo onde nunca há cabides suficientes para pendurar a roupa, onde tem de pôr um pé descalço no chão sujo, para experimentar cinco ou seis itens, dos quais apenas um lhe ficará razoavelmente bem, depois de ser adaptado pelas costureiras da loja?

Quem quer descobrir, sem uma pessoa amiga por perto, que o seu número afinal já não é o 38, muito menos o 36?

Quem quer ver-se confrontada com a sua pele branca, os seus pêlos a irromper por todos os poros, a sua celulite e as suas gordurinhas pessoais num espelho cruel, a menos de 10 cm de distância, e sob uma luz igualmente cruel?

Quem quer chegar à conclusão, após uma longa permanência dentro de um espaço onde as outras clientes são sempre mais giras, bem penteadas e magras, de que precisa de ir ao cabeleireiro, à nutricionista e ao cirurgião, antes de ali voltar?

Quem quer chegar à conclusão, depois de timidamente agarrar numa camisa para pagar, de que aquela peça afinal não está em saldo, ou que tem um defeito?

Quem quer chegar a casa cansada, triste e desmoralizada, após uma tarde que deveria ter sido agradável?

Eu não. E é por isso que ando sempre com as mesmas roupas fora de moda e nunca me apetece ir às compras para mim.

17/10/06

ALGUÉM CORDIAL

Trabalhar com alguém cordial sabe tão bem, que até apetece fazer render o trabalho, para que a conversa se prolongue.

A boa educação, infelizmente, é uma qualidade cada vez mais rara. A falta de tempo e de paciência fazem-nos comunicar uns com os outros apenas para dizer o que é necessário, economizando palavras e simpatia. Em casa ou no trabalho, o que é preciso é despacharmo-nos a cumprir todas as tarefas, para depois podermos descontrair, afundados em cansaço ou letargia.

Não devíamos, mas muitas vezes esquecemo-nos de dizer por favor e obrigada, de sorrir, de tratar os outros como se tivéssemos imenso prazer em estar com eles. Mesmo que assim não seja.

Hoje, tive o privilégio de trabalhar durante uma hora com uma pessoa que não se esquece de nenhuma dessas gentilezas no trato com os outros. Alguém que, por mais atarefado que esteja, tem sempre tempo para a cortesia. Felicitou-me por estar com bom aspecto, falou sempre a sorrir, fez apartes humorísticos, analisou as minhas sugestões com atenção e delicadeza, mesmo quando não concordava com elas. Explicou-me coisas que eu já deveria saber, sem no entanto ser minimamente paternalista ou pedante, elogiou-me quando fiz observações pertinentes e, no fim, ainda fez questão de me oferecer um chá.

É preciso ver que se trata de uma pessoa importante, da qual, por essa razão, se poderia esperar o oposto: arrogância, falta de humildade, antipatia – defeitos que muita gente desenvolve quando atinge um estatuto de superioridade social, seja profissional, financeira ou intelectual. Não faltam por aí exemplos de pessoas que não fazem nada de jeito e tratam os outros como se fossem idiotas, escravos ou desgraçados. Talvez por isso me tenha encantado ainda mais a sua cordialidade.

Dei por mim a pensar se não haverá no seu passado, na sua educação, uma ou várias razões que expliquem a sobrevivência da sua postura exemplar, apesar do sucesso. Será por pertencer a uma geração anterior aos liberais anos 70? Será por ter vivido muitos anos no estrangeiro? Será por ter tido exemplos igualmente excelentes de pais, familiares, amigos, professores? Será uma questão de personalidade?

Seja como for, é um prazer conhecer alguém assim. E uma lição, é claro.

16/10/06

CITAÇÃO DO DIA



A crise é uma doença permanente da humanidade no espaço e no tempo, e dela nos falam todos os documentos amontoados nos arquivos, toda a história literária, todas as obras de meditação nascidas do recolhimento do espírito e da observação das sociedades.


Rómulo de Carvalho, "Sobre o Estado Actual do Ensino da Física", Palestra, 37-39 (1970)

14/10/06

Hoje é um bom dia para ser optimista



Tentar ser optimista é para mim um desafio. Talvez uma quimera, nos dias piores.

Já sei que tenho muita sorte na vida, mas tenho também o azar de ser assim, stressada, com tendência para me concentrar no que me preocupa e para esquecer o que me faria sorrir.

Mas desde que descobri o blogue da Optimist, tenho tentado pensar mais positivamente. E é bom. Mesmo quando as preocupações continuam a ser o meu pano de fundo mental, divirto-me a procurar as coisas bonitas e agradáveis de cada momento, de cada cenário.
Ficou-me na memória a frase-chave do Positiva Mente: "hoje é um bom dia para"... E
desde manhã que tenho procurado completá-la, ao longo do dia. Na verdade, não foi difícil. Porque será que eu tanto resisto a olhar a felicidade de frente?
Ao repetir a frase para mim própria, percebi que hoje foi um óptimo dia para muitas coisas: foi um boa dia para apreciar o rio, os veleiros, a margem verdejante. Para admirar os bichinhos que circulam pela terra e pelo ar, num baldio que afinal tem vida. Para levar a minha filha ao parque e para me rir, quando ela me confidenciou: «ó mãe, eu tenho que dizer "fógasse" porque a Margarida anda a fugir de mim!». Para ter uma conversa importante com o meu marido e descobrir que ficámos mais felizes, mais unidos, por termos tido a disponibilidade para falarmos e para nos ouvirmos. Para dar um passeio nocturno e sentir a diferença de temperatura à passagem por um terreno bravio, tão fresco e cheiroso que parecia um viveiro de ervas aromáticas. Para voltar a casa e petiscar uma saborosa ceia. Para ir dormir e pensar como é engraçado que uma pessoa desconhecida nos possa fazer sentir melhor connosco próprios.

AGENDA CONTRA O STRESS

Arrumar as ideias. Não entrar em pânico por ter vinte coisas para fazer e não saber por onde começar. Respirar fundo. Levar o cão a passear e estabelecer as prioridades. Em casa, fazer um apontamento na agenda, com as tarefas a realizar em cada dia: sábado, dia 14 - ver situação do Conselho Pedagógico; planificar aula TEC; fazer novo quiz para aula LP. Descobrir que, se seguir o plano das tarefas, sou capaz de realizar mais do que as previstas e ainda sobra tempo para brincar com a Mecas, escrever no blogue e saborear o jantar cozinhado com calma. Sim, porque enquanto se faz o jantar também se arrumam ideias.

11/10/06

ISTO É PARA TI (e para todos os que se sintam visados!)

Dizes que fumas muito e que vais morrer antes de mim.
Apetece-me gritar contigo.

E as tuas filhas? Que idade terão elas quando souberem que a mãe está doente e ficará cada vez pior? Acharão elas que fumar era um direito que tinhas, que tomar conta de ti é um simples dever e que o farão de bom grado? Ficarão satisfeitas por te poder ver definhar?

Foges delas, quando fumas. Mas qual é o problema de te verem fumar? Não queres dar esse mau exemplo? Acreditas que elas têm menos probabilidade de vir a cometer o teu erro se não souberem que o cometes? Não vês que aquilo que elas se verão forçadas a ver mais tarde é muito pior do que o teu segredo de agora? Não vês que depois, quando realmente valer a pena, não conseguirás esconder a verdade?

Se não consegues parar por ti, então pensa nelas. E pára por elas. Enquanto é tempo.

10/10/06

FELICIDADE ADIADA










A velhice assusta-me, como a quase toda a gente.

Vivemos uma vida inteira a correr, sem tempo para desfrutarmos daquilo que nos é verdadeiramente importante, como ver os filhos crescer, estar (quando nos apetece) com os amigos e a família, e depois, quando chegamos àquela idade em que nos sobra tempo, faltam-nos a saúde, o ânimo, ou mesmo os amigos e a família.

Não me entusiasma a ideia de passar os próximos trinta anos da minha vida a trabalhar, não por considerar o trabalho como uma obrigação nefasta, pelo contrário, mas porque o trabalho a tempo inteiro nos obriga a adiar quase todos os sonhos e a privar-nos de muitas coisas boas, que não esperam pela nossa disponibilidade.

Gostaria de acreditar que ficarei feliz, ao chegar à reforma, por finalmente ter a oportunidade para fazer o que me apetece. Mas há um problema: é que aquilo que me apetece fazer agora provavelmente não me vai apetecer quando tiver 65, 70, 80 ou 90 anos.

Aquele senhor que encontro todos os dias, no seu caminho para o café, e que vai fazer 94 anos, faz-me sempre pensar. Quando o cumprimento, satisfeita por continuar a vê-lo, lamenta-se invariavelmente da monotonia dos seus dias. Diz-me que não faz mais do que passear pelo bairro, tomar café e ler o jornal, conversar com alguns vizinhos e voltar para casa. «E cá estou, à espera da minha vez» – declara, com um sorriso sério. O que faria eu no lugar dele?

Ingenuamente, imagino-me a conduzir até à praia, para passear à beira-mar, na companhia de alguma amiga. A apreciar as minhas músicas preferidas, sem ter de estar a fazer outra coisa ao mesmo tempo. A ler todos os livros que agora me ocupariam demasiado tempo. A passar dias inteiros a escrever. A visitar museus, monumentos, a fazer viagens pelo mundo fora. E no entanto, não me atreveria a fazer essas sugestões às pessoas mais velhas que conheço. Porque para tudo isso é preciso ter capacidades que se perdem com a idade, a começar pela paciência.

E eu, que já não tenho muita, passo mais tempo a pensar no que farei quando for velha do que no que posso fazer agora. E o tempo é o que se faz com ele. Se for adiando sempre todos os sonhos, o mais certo é que ganhem bolor. Se me apetece estar com amigos, ir a algum lado, ter uma experiência qualquer, certamente encontro numa das 24 horas do dia, num dos sete dias da semana, um momento para viver um pouco dessa realidade, afinal desnecessariamente adiada.

07/10/06

ESTRANHO ADEUS


O Pedro.

«Cheira-te a bolos?!» - perguntava ele, galhofeiro, quando a minha irmã lá ia a casa. E ela ficava ofendida, não via a graça da insinuação.

A mim perguntava-me sempre se queria um cão. Eu ficava incrédula, mas a proposta era demasiado entusiasmante. E quando ele insistia: «passa lá em casa logo à tarde, que eu dou-te um!», eu acabava por me deixar vencer pela curiosidade, na expectativa de que talvez daquela vez ele não estivesse a brincar. Era sempre mentira.

O Pedro e a Ivone.

Vizinhos e amigos, desde que nasci. Jantei e dormi lá em casa muitas vezes, quando os meus pais viajaram. Uma espécie de avós jovens e disponíveis, sempre ali à mão.

O Pedro fumava muito.

Quando os meus pais ligaram, a caminho do Algarve, a dizer que ele tinha sido vencido pelo cancro, eu já esperava que isso acontecesse um destes dias.

Confesso que nunca o fui visitar desde que soube que ele estava doente, porque sabia que me ia custar muito vê-lo definhar, sem cor, sem jovialidade, sem sentido de humor.

Fui com a minha irmã despedir-me de um corpo escondido dentro de um caixão, do qual não me aproximei. É sempre difícil de acreditar que a pessoa, outrora viva como nós, está metida ali dentro.

O ambiente constrangedor dos velórios havia dado lugar a um convívio cada vez menos discreto, menos contido. Apesar dos pedidos de silêncio afixados nas paredes frias de pedra, os vizinhos, amigos e familiares que se reencontravam iam estabelecendo uma amena conversa, como que esquecidos das circunstâncias. Os mais velhos perguntavam aos mais novos pelos filhos, como sempre acontece nestas ocasiões. Como se a morte de uns fosse de alguma forma amenizada pela invocação do nascimento de outros, pela promessa de vida que assim se prolonga, oferecendo-nos uma réstia de esperança, de segurança.

Olhamos em volta e reconhecemos antigos vizinhos dos meus pais. Impossível não lhes falar, não sorrir, não encetar uma breve conversa que nos leve de volta aos velhos tempos. Sinto os olhares de algumas pessoas a quem não falei. Recuso fazer do momento uma ocasião social e sento-me num banco, à espera. Tento concentrar-me no Pedro, despedir-me dele, falando-lhe no meu pensamento. Mas há demasiada gente à minha volta.

Sem missa, sem padre, sem qualquer espécie de cerimónia, o caixão é transportado para o carro funerário e a pequena multidão dispersa-se pelos seus automóveis. Durante a viagem para o cemitério, eu e a minha irmã vamos recordando alguns farrapos de memórias. Falamos da mulher e da filha. Como será a vida delas, daqui para a frente? A minha irmã declara que provavelmente irá enlouquecer, quando for a vez dos nossos pais. É assustador pensar nisso, ouvi-la dizer isso.

Chegamos ao cemitério e o rebanho volta a juntar-se. Expectantes, ficamos quase todos em pé, à porta do crematório. Ninguém parece ter experiência em funerais assim, pouco ortodoxos. Lá dentro, os familiares e amigos mais chegados estão sentados mas ausentes, em penoso recolhimento.

Curiosamente, até eu, que não sou católica e não gosto de missas, sinto um vazio, naquele estranho silêncio descrente. Chega-me um vago sentimento de desconforto das pessoas em meu redor, que parecem igualmente desamparadas, ante a falta de uma voz que nos una a todos no mesmo propósito, na mesma antiga certeza de que aquele homem, tal como todos nós, parte para uma outra vida, para um mundo de paz.

Sem o discurso de um padre, ou de alguém que se disponha a dizer seja o que for em voz alta, ficamos como que de consciência despida, vulneráveis a todos os pensamentos, a todos os receios que nos possam ocorrer.

Admiro a coragem – porque acredito que há coragem nisso – da família, em fazer uma despedida assim silenciosa. Sinto pena deles.

Finalmente, sinto pena de todos nós.

MÃE TOTÓ




- Ó mãe, as mães totós dão gelados às filhas antes de jantar e tu podes ser uma mãe totó!

04/10/06

NÓS E ELES





Os comentários ao meu texto anterior deram-me que pensar e, finalmente, fizeram-me ter vontade de voltar a escrever sobre o tema.

Mais uma vez, parto de um mote lançado por Luís Alves de Fraga: «o machismo é uma defesa criada pelos homens contra o imenso poder das mulheres, nada mais!».

Mas não sei bem como começar... e, na verdade, nem sei muito bem o que tenho para dizer. Só sei que fiquei com vontade de explorar um pouco mais este assunto. Talvez porque o sinto como um problema, ou pelo menos como uma questão que ainda não resolvi inteiramente. E talvez, também, por me ter saído um texto sucinto, em verso, que insinua mais do que explica. E eu nisso pareço o Saramago: tenho tendência para andar às voltas, às voltas, em torno do mesmo, até à exaustão! E, naquele texto, não me expliquei o suficiente (pelo menos para mim).

O machismo parece-me bem definido ali, na sua essência. Bem mais difícil de definir será esse tal “imenso poder das mulheres”, mas parece-me indubitável que ele tem sido sempre sentido ao longo da história da humanidade, ao ponto de muitas religiões e tradições instituírem a inferioridade das mulheres a vários níveis, todos eles absurdos, mas ferozmente impostos pelos poderes de cada sociedade. Mas não é por aí que quero ir. Aliás, já escrevi sobre isso, a propósito de um documentário que vi na televisão.

Já vivi com dois homens.

Com o primeiro, foi uma luta constante. Primeiro, as meias sujas no chão, a falta de ajuda na confecção das refeições, na limpeza da casa, o desinteresse total pelas tarefas domésticas que eu, ao mesmo tempo (e paradoxalmente), ia assumindo. Seguiu-se a frustração perante a irredutibilidade dele, que nem depois de reconhecer a injustiça da situação fez um esforço por alterá-la. Finalmente, a resignação amargurada de quem aceita um destino de escravidão porque não sabe viver de outra maneira e porque se vê forçada a aceitar que esse destino é da sua responsabilidade.

Quando tive a oportunidade de começar de novo, do zero, não me enganei com ilusões. Sabia que o problema iria voltar a surgir e que estava em mim mudar de atitude, de forma a poder resolvê-lo de forma construtiva.

O meu querido marido não é um machista convicto, como muitos também não serão. Digamos que manifesta o “machismo involuntário e inconsciente” característico de muitos homens para quem a vida conjugal é um prolongamento da vida em casa dos pais, com a vantagem de a “mãe” passar a ter mais uma função ou duas. A culpa, reconheço, é nossa. Porque nós nos assumimos, em muitos casos, como as mamãs dos nossos maridos.

Agora que tenho quatro anos de experiência na segunda relação a dois, percebo que mudar esse tipo de padrão é muito mais difícil do que parece. Por mais conscientes que estejamos dos problemas, a mentalidade e, sobretudo, os padrões de comportamento são extremamente difíceis de contrariar.

O chavão é inevitável: é com amor e respeito mútuo que se conseguem os compromissos necessários para que nenhum dos dois se sinta lesado. Mas toda a gente sabe que o amor não se compra no hipermercado e que é algo que dá muito trabalho a manter vivo.

Acho especialmente interessante a sugestão da Vida de Praia: dar prioridade ao que é realmente importante e lutar por isso.

O pior é se der por mim a pensar que não apanhar as meias do chão é realmente importante...

Agora pergunto: será o machismo, hoje, uma defesa dos homens?

Parece-me que é antes uma incómoda herança que, apesar de estar prestes a deixar de fazer sentido, tanto homens como mulheres vão prolongando, querendo ou sem querer.


02/10/06

A SÉRIO





Ralho com ele e trato-o como se fosse um filho.

É uma tendência normal nas mulheres, dir-me-ão vocês.

Talvez.

Mas não gosto nada de me ouvir a censurá-lo pelo que não fez.

Sigo o padrão da minha mãe, que vejo também na minha irmã.

Mas acho que uma relação assim nunca pode ser inteiramente sã...

Parece que sou eu que mando,

“I wear the trousers”, como dizem os ingleses.

Mas sei muito bem que não gostaria que ele me tratasse

como eu o trato tantas vezes.

Não sei por que razão este desabafo

me está a sair assim desta maneira!

se ele lê isto ainda vai pensar que faço pouco de nós,

que é apenas uma brincadeira.

Desculpa, querido, se o texto me saiu assim rimado.

E se pensas que estou a brincar, estás enganado.

01/10/06

MÃE SERÔDIA

Hoje estou muito zangada com a minha filha.

Na verdade, estou zangada comigo, por ser a responsável pelas birras de mimo dela, mas a um nível mais imediato não posso deixar de me zangar com ela. Está insuportável.

Os meus pais costumam dizer que o nosso mal é sermos pais dez anos depois da idade em que deveríamos ter sido pais, ou seja, aos trinta em vez de ter sido aos vinte.

Na ideia deles, os pais com vinte têm pouca paciência para fazer as vontadinhas todas aos filhotes, estão demasiado ocupados a estudar, a procurar emprego, a procurar causar boa impressão no primeiro emprego. Para além disso, têm uma vida social mais intensa e exigente, o que os leva a deixar mais frequentemente os filhos com outras pessoas e a ser menos “galinhas” com eles.

Os pais de trintas já têm uma vida profissional mais ou menos estável. Tipicamente, são aqueles que optaram por atingir um nível económico mais favorável antes de terem filhos. Por isso mesmo, têm mais meios para satisfazer as suas vontades e caprichos e são mais “moles” com eles.

Não vale a pena desenvolver mais uma teoria que, por um lado, não é minha e, por outro, nunca me foi explicada nestes termos, mas apenas insinuada em frases breves.

Contudo, sinto que há nela um fundo de razão. Eu própria me sinto uma "mãe serôdia". E conheço muitos casais que foram pais com mais de trinta anos que têm mais ou menos a mesma conduta que eu, aquela que os meus pais censuram: cedem aos caprichos dos filhos e pensam primeiro em agradar-lhes e só depois em educá-los. Querem, sobretudo, vê-los felizes, mesmo que seja com prejuízo de umas boas palmadas quando eles merecem.

Hoje, mais do que em qualquer outra ocasião, sofri com os meus erros. A minha filha fez birra atrás de birra, fosse para me enervar, para ver até onde podia ir, ou simplesmente porque lhe deu gozo contrariar-me. Gritei com ela, enfureci-me, dei-lhe o espectáculo que ela parecia querer ver.
No fim, venci a teima, porque afinal quem manda sou eu. Mas, se a tivesse educado convenientemente, não teria havido teima nenhuma para vencer.