18/08/06

ALGUÉM DISTANTE

Não é fácil homenagear alguém que se conheceu mal e cujos defeitos sempre foram mais destacados pelos outros do que as qualidades. Mas não consigo deixar passar a morte do meu tio Zé Manel sem escrever alguma coisa. Para mim, escrever é pôr os pensamentos em ordem e não me parece bem deixar em desordem o que pensei dele, o que senti nas poucas ocasiões em que estive com ele.
O tio Zé Manel elegeu-me, não sei bem porquê, enquanto sobrinha. E custa-me admitir que me tenha tratado tão bem, numa altura em que mal falava com a própria filha. Mas eu era nova de mais para o julgar, ou para recusar os seus amáveis convites para almoçar fora, com a namorada e o meu primo. Foi ele que me levou ao Cristo-Rei, num passeio que nunca mais esqueci.
À medida que fui crescendo, fui ouvindo e sabendo coisas pouco abonatórias daquele tio por afinidade que parecia prezar a boa vida acima de tudo, de preferência longe de quaisquer responsabilidades ou contrariedades. Já estava separado da minha tia desde que me lembro, por isso só o via quando ele tomava a iniciativa de me ir buscar para irmos passear os quatro. E eu adorava esses passeios.
O tio Zé Manel, para mim, era um homem incrivelmente jovem de espírito – aliás, também o era de aspecto. Parecia incansável na sua vontade de nos proporcionar momentos agradáveis, que nos fizessem apreciar os pequenos prazeres da vida, como um bom almoço ou uma vista bonita. Sempre me senti vagamente desconfortável por estar ali, no lugar que deveria ser ocupado pela filha, três anos mais nova do que eu, e que ele parecia fingir que não existia. Mas ele conseguia fazer-me sentir bem, por demonstrar verdadeiro gosto em ter-me ali, junto deles, como se fosse da família, quando na verdade não lhe era nada senão a sobrinha da ex-mulher.
Deixei de o ver há muitos anos, quando ele se zangou com o filho, com quem nunca mais falou.
Há dias, a minha mãe disse-me que ele tinha morrido subitamente, enquanto conduzia. Fui ao velório no dia seguinte de manhã e encontrei a capela vazia, com o caixão fechado.
Atarantada por estar na presença do tio Zé Manel, aquele homem que parecia um miúdo e agora estava ali dentro daquela caixa, prestes a ser cremado, hesitei. Pareceu-me que não seria adequado entrar. Mas depois não me apeteceu ficar ali fora, exposta ao ollhar curioso das senhoras que ali estavam a tomar conta. Entrei, sentei-me e resolvi encarar o espaço da sala, em vez de ficar de olhos baixos, como é costume, alheia a tudo, com medo de enfrentar a realidade da morte ali presente.
Conversei com ele, em silêncio. Agradeci-lhe a simpatia que sempre demonstrou comigo. E fiquei feliz quando a minha prima chegou e pudemos conversar um pouco, como nunca conversámos antes, sobre ele e sobre eles. Foi bom ouvi-la dizer que tinha boas recordações do pai, que a atitude dele mudara radicalmente quando ela fizera 18 anos e que nos últimos tempos se havia revelado um bom amigo e um avô extremoso.
Obrigada, tio Zé Manel. Por se ter empenhado também, afinal, em fazer a sua filha feliz. Porque isso é mais um motivo para eu o recordar com um sorriso.

6 comentários:

Anónimo disse...

Os meus pêsames.

Jaime
www.blog.jaimegaspar.com

Vida de Praia disse...

A vida é complicada demais para se fazer juízos, tantas facetas por conhecer, tantos lados escondidos das questões, tantas voltas alheias à razão....

tikka masala disse...

É verdade. A maioria das pessoas não é boa nem má, é simplesmente multifacetada. Obrigada, Jaime :)

Dulce disse...

Fizeste-me chorar, minha amiga.

Há sentimentos e atitudes de que não nos orgulhamos. Hoje não estou particularmente orgulhosa de mim.

Como não havias de amar um tio imperfeito que te amou?

Anónimo disse...

Não deixa de ser curioso o facto de termos quase sempre as melhores recordações daqueles com quem convivemos apenas em ocasiões tão agradáveis como efémeras. O difícil é gostar dos que temos à nossa beira todos os dias. E quem diz dias, diz noites...

tikka masala disse...

Muito profundis, esse comentário. Nada como um moralista de domingo à sexta-feira para nos pôr a pensar!