07/10/06

ESTRANHO ADEUS


O Pedro.

«Cheira-te a bolos?!» - perguntava ele, galhofeiro, quando a minha irmã lá ia a casa. E ela ficava ofendida, não via a graça da insinuação.

A mim perguntava-me sempre se queria um cão. Eu ficava incrédula, mas a proposta era demasiado entusiasmante. E quando ele insistia: «passa lá em casa logo à tarde, que eu dou-te um!», eu acabava por me deixar vencer pela curiosidade, na expectativa de que talvez daquela vez ele não estivesse a brincar. Era sempre mentira.

O Pedro e a Ivone.

Vizinhos e amigos, desde que nasci. Jantei e dormi lá em casa muitas vezes, quando os meus pais viajaram. Uma espécie de avós jovens e disponíveis, sempre ali à mão.

O Pedro fumava muito.

Quando os meus pais ligaram, a caminho do Algarve, a dizer que ele tinha sido vencido pelo cancro, eu já esperava que isso acontecesse um destes dias.

Confesso que nunca o fui visitar desde que soube que ele estava doente, porque sabia que me ia custar muito vê-lo definhar, sem cor, sem jovialidade, sem sentido de humor.

Fui com a minha irmã despedir-me de um corpo escondido dentro de um caixão, do qual não me aproximei. É sempre difícil de acreditar que a pessoa, outrora viva como nós, está metida ali dentro.

O ambiente constrangedor dos velórios havia dado lugar a um convívio cada vez menos discreto, menos contido. Apesar dos pedidos de silêncio afixados nas paredes frias de pedra, os vizinhos, amigos e familiares que se reencontravam iam estabelecendo uma amena conversa, como que esquecidos das circunstâncias. Os mais velhos perguntavam aos mais novos pelos filhos, como sempre acontece nestas ocasiões. Como se a morte de uns fosse de alguma forma amenizada pela invocação do nascimento de outros, pela promessa de vida que assim se prolonga, oferecendo-nos uma réstia de esperança, de segurança.

Olhamos em volta e reconhecemos antigos vizinhos dos meus pais. Impossível não lhes falar, não sorrir, não encetar uma breve conversa que nos leve de volta aos velhos tempos. Sinto os olhares de algumas pessoas a quem não falei. Recuso fazer do momento uma ocasião social e sento-me num banco, à espera. Tento concentrar-me no Pedro, despedir-me dele, falando-lhe no meu pensamento. Mas há demasiada gente à minha volta.

Sem missa, sem padre, sem qualquer espécie de cerimónia, o caixão é transportado para o carro funerário e a pequena multidão dispersa-se pelos seus automóveis. Durante a viagem para o cemitério, eu e a minha irmã vamos recordando alguns farrapos de memórias. Falamos da mulher e da filha. Como será a vida delas, daqui para a frente? A minha irmã declara que provavelmente irá enlouquecer, quando for a vez dos nossos pais. É assustador pensar nisso, ouvi-la dizer isso.

Chegamos ao cemitério e o rebanho volta a juntar-se. Expectantes, ficamos quase todos em pé, à porta do crematório. Ninguém parece ter experiência em funerais assim, pouco ortodoxos. Lá dentro, os familiares e amigos mais chegados estão sentados mas ausentes, em penoso recolhimento.

Curiosamente, até eu, que não sou católica e não gosto de missas, sinto um vazio, naquele estranho silêncio descrente. Chega-me um vago sentimento de desconforto das pessoas em meu redor, que parecem igualmente desamparadas, ante a falta de uma voz que nos una a todos no mesmo propósito, na mesma antiga certeza de que aquele homem, tal como todos nós, parte para uma outra vida, para um mundo de paz.

Sem o discurso de um padre, ou de alguém que se disponha a dizer seja o que for em voz alta, ficamos como que de consciência despida, vulneráveis a todos os pensamentos, a todos os receios que nos possam ocorrer.

Admiro a coragem – porque acredito que há coragem nisso – da família, em fazer uma despedida assim silenciosa. Sinto pena deles.

Finalmente, sinto pena de todos nós.

6 comentários:

Dulce disse...

Às vezes a vida troca-nos as voltas. Acredita que não vale a pena pensar "como será quando...". Pode ser muito diferente.
Um beijinho.

Vida de Praia disse...

Fiquei sem palavras. É sempre assim que me deixa o ponto final, ou pelo menos o ponto e vírgula, que representa a morte.

Anónimo disse...

Deprimente. Talvez porque nos faz lembrar que qualquer dia será a nossa vez. Mas, nessa altura, felizmente, não assistiremos ao acto...
Na verdade, é o defunto o que menos sofre!

Luís Alves de Fraga disse...

Minha Amiga,
A morte é a continuação da vida, por muito paradoxal que lhe possa parecer; só há morte, porque há vida.
A consciência da morte só nos assalta quando vamos ganhamdo a consciência da vida; esse o motivo por que o embate da morte é sempre muito grande entre os vinte anos e os quarenta anos de idade. É que, quanto mais jovens somos, mais inconsciência temos da vida! Depois dos quarenta começamos a interrogar-nos sobre quando será a nossa vez... Primeiro, sem grande convicção, mas depois com grandes certezas. A certeza de que um dia será.
É por isso que era bom ficarmos toda a vida (mesmo em velhinhos) a perguntar se a nossa mãe é tótó!

Isa Maria disse...

este relato é perfeito e tão real, que m deixou a pensar nesse momento tão negro das nossas vidas. Quantos funerais não servem para unirem familias afastadas pelo tempo, que as consome em correrias de nada?
Achei graça, sem ter graça é claro, sobre o facto de ter referido a falta do padre para ajudar à despedida decente do defunto que nessa hora já deixa saudade. Mas são os tempos modernos. Se não cremos na figura divina, para quê o usarmos nessa hora tão frágil?

tikka masala disse...

Que disparate, amiga! E logo eu... se tentasse dizer uma palavra, só me sairiam soluços. Mas também gostava que alguém falasse na despedida de mim. O problema é arranjar quem se disponha a fazê-lo! Essa é, se não for mais nenhuma, a função do padre: alguém suficientemente desligado para poder articular um discurso de despedida.