Li há tempos um texto dos Cadernos de Lanzarote em que Saramago se mostrava momentaneamente preocupado com o facto de estar a dar-se demasiado a conhecer ao mundo, através dos seus diários.
Já o ouvi muitas vezes falar em público e ressalta do seu discurso a vontade de se revelar, de se expor – que de resto será comum a quase todos, senão a todos, os escritores. Uma vez, ele disse mesmo isto: «No fundo, creio que a única coisa em que penso é em dizer quem sou.»
Mas também é natural que se questione sobre aquilo que revela, sobre os eventuais limites da inconfidência. Afinal, ao publicar os seus diários, o autor está a permitir que as pessoas do mundo inteiro – amigas e inimigas, conhecidas e desconhecidas – saibam coisas dele que talvez não devessem ter passado para fora do círculo da sua intimidade. É natural que haja momentos em que se arrependa do que escreveu. Mas vai escrevendo sempre, porque é mais forte a vontade de se revelar do que a necessidade de manter o essencial, ou o mais íntimo, ou o menos próprio, na escuridão.
Ainda no mesmo texto, um amigo deu-lhe a resposta de que ele precisava, para reencontrar a paz de espírito quanto às suas revelações: no fundo, o que ele mostrava nos cadernos era apenas uma sombra de si, um contorno. Tudo o mais permanecia oculto.
Eu não sou escritora e acho que nunca o serei. No entanto, partilho com os escritores esta estranha vontade de me despir através da escrita, de me dar a conhecer até ao mais ínfimo pormenor – mesmo para além do contorno, apontando um foco de luz para as zonas que jazem na penumbra. Por vezes, coíbo-me. Faço um esforço consciente para não dizer tudo, e principalmente para não contar aquilo que depois possa ser usado contra mim. Mas custa-me. A tentação de me revelar ao mundo é muito grande e, quando o faço, sinto-me inexplicavelmente bem. Como se, ao contar-me, pudesse finalmente compreender-me. Ou como se, apenas expondo-se, a minha pessoa fizesse sentido. Ou como se, ao dizer toda a verdade sobre mim, pudesse exorcizar aquilo que me incomoda e redimir-me através da confissão pública.
Porque as coisas piores, as mais sórdidas, as menos apropriadas, as mais estapafúrdias, as menos abonatórias são as que eu mais gosto de revelar. Não tenho vergonha e sinto-me perfeitamente à vontade com todos esses defeitos e essas idiossincrasias, embora tenha noção de que muita gente prefere não saber tudo a meu respeito. E é por respeito, também, que não lhes conto tudo, que não as obrigo a verem-me inteira, tal como sou. Mas apetece-me.
Lembro-me de ler as confissões de Rousseau e de ter achado espantoso o seu despudor em admitir ter sentido, pensado e feito coisas que não eram minimamente adequadas, com a simplicidade de quem diz: «sou assim, o que hei-de fazer?». E lembro-me de me ter identificado com ele por isso mesmo.
Sou uma espécie de stripper verbal, mas com pouco jeito para a dança e com um “corpo” feio de se ver. E sem vergonha! O que hei-de fazer?
5 comentários:
Stripper verbal? Muito bem visto... :)
Deixa-te ser quem és.
Pois eu sou como a cebola arnada em castelo medieval. Quanto mais interior é a camada, mais defesas tenho em alerta.
De qualquer forma, concordo consigo. escrever é também um acto de revelação. Mas eu sou muito púdico.
Quanto ao facto de nunca vir a ser escritora, tenho a certeza de que está errada. Porque já o é.
Não concordo consigo. Peço desculpa!
Não concordo, porque está a sofismar. Explico.
Os escritores desfraldam-se nas personagens que criam, desnudam-se nas paixões e desatinos de que as dotam... Mas nós sabemos quem eles são, mesmo quando usam pseudónimo!
Ora, a Tika faz o "jogo" ao contrário: desnuda-se, mas nós (eu, pelo menos) não sei quem estou, de facto, a ver...
Desculpe, mas julgo que esta é, afinal, a verdade que não nos mostra!
Ora viva, LAF!
E que comentário tão interessante... como sempre!
É certo que quem escreve sempre "joga" - ou seja, há sempre uma boa dose de fingimento ou pelo menos de transfiguração, seja intencional ou não.
Mas eu sempre achei que me expunha - e exponho. Não me lembrei foi de que, para um desconhecido, essa revelação é muito limitada e relativa (como o é a revelação que de si fazem os escritores, cujas personagens podem ser muito mais reais do que imaginamos). No fundo, estava a pensar que os que já me conhecem me ficam a conhecer ainda melhor. Os outros, nem por isso. Tem toda a razão!
Uma análise bastante pertinente de facto... e tb para isso é preciso alguma coragem.
Aproveito para desejar uma Boas Festas com muita Paz e Alegria !
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