Um dos ensinamentos que a minha mãe me transmitiu é particularmente curioso e resulta de uma singular junção entre valores estéticos e morais: trata-se do conceito do “feio”.
Sei que na tradição oral, o feio está de tal forma associado ao mau, que é quase impossível distinguir um conceito do outro. Nas narrativas tradicionais, os protagonistas (bons) são sempre bonitos e os vilões ou vilãs são notoriamente feios. Por influência desses preconceitos, ainda hoje quase ninguém resiste a criticar as crianças que se comportam mal dizendo-lhes que são “feias”. Como se a fealdade exterior tivesse alguma relação com a maldade, a teimosia ou a má educação, defeitos que assim se tornam numa espécie de “fealdade interior.”
A preocupação da minha mãe não seria propriamente transmitir-me valores tradicionais, nem me lembro de alguma vez ela me ter contado uma história. Mas a importância do bonito como oposto do feio que ela sempre se empenhou em incutir-me vai muito para além da estética e reveste-se de uma série de qualidades que, se não são valores morais, são a única espécie de educação explícita que eu recebi.
Ao longo de toda a minha infância e adolescência, não me lembro de me terem ensinado a não mentir, a respeitar as diferenças, a valorizar a humildade, a partilhar, a saber ficar calada nos momentos certos, ou a honrar compromissos e promessas – o que teria sido realmente útil e importante, a meu ver. Mas em contrapartida fui recebendo e assimilando inúmeras lições sobre o que era feio, e que incluía posturas e atitudes tão inócuas como comer só com o garfo, perguntar “quem é?” quando alguém tocava à campainha, dizer “com licença” quando nos saía um arzinho involuntário pela boca, ou perguntar “o quê?” quando queríamos que alguém repetisse o que não tínhamos ouvido. Tudo isso era feio e o bonito, que era o correcto, era comer sempre com os dois talheres, perguntar “faz favor?”, não dizer rigorosamente nada e perguntar “diga?”, respectivamente.
O feio servia assim para classificar todos os comportamentos desviantes da etiqueta que a minha mãe cultivava. Mas também era invocado para justificar a necessidade de manter tudo limpo, arrumado e – sobretudo – no lugar e na forma por ela desejados. Não era apenas uma questão de estarem as camas feitas, os brinquedos nos seus lugares, a roupa arrumada, tudo impecável. Havia também outras imposições mais difíceis de compreender e que afinal só na sua lógica pessoal podiam fazer sentido: uma porta, por exemplo, que devia ficar aberta ou fechada, porque só nessa posição é que ficava bem. Ainda hoje, a minha mãe não consegue jantar sossegada na sala, se souber (mesmo de costas!) que a porta da cozinha está aberta, e não tem nada que ver com correntes de ar!
Quando perguntávamos por que não se devia ou podia fazer isto ou aquilo, deixar as coisas de outra forma, a resposta dela era apenas uma: «porque é feio». Aliás, duas, porque havia a variante: «porque não é bonito.»
E assim fiquei marcada para o resto da vida por esta preocupação excessiva com a aparência, a organização, a posição das coisas, com o que fica bonito e o que não fica. E dou por mim a explicar a razão das minhas escolhas (ou imposições) simplesmente assim: porque é muito mais bonito.
9 comentários:
Vou confessar-te uma coisa muito "feia": sempre comi só com o garfo em casa dos meus pais, e ainda hoje (excepto nos restaurantes) é assim que como.
E há coisas que como com a mão...
Pois, Dulce. E eu, graças à minha esmerada educação (chiça!), aprendi a condenar-te por isso. Achas bem?
Não, não acho bem, mas acho compreensível. E ultrapassável. Não é isso que nos impede de sermos amigas.
Beijo grande!
Ai... vais ficar desapontada comigo, mas também só como com garfo, a não ser que tenhamos visitas ou esteja num restaurante. E não apanhei logo de princípio o que querias dizer com a fealdade do "quem é?" e "o quê?" - ou seja: tenho umas PÉSSIMAS maneiras, sou muito "FEIA" ; )
Os nossos pais ensinam-nos cada coisa mais absurda!... Fico contente por teres ultrapassado os ensinamentos da tua infância; pelo menos distancias-te deles e olha-los com olhos críticos, o que já é um passo largo.
Nesse contexto, feio e bonito não passam de metáforas que, com o tempo, acabaram por se tornar sinónimas de bom e mau.
Mas não deixa de ser cruel essa conotação. E muito boa gente tem sido marginalizada por causa dela.
A minha mãe quando se zanga com as cadelas chama-lhes "feias". Eu prefiro chamar "lontra gorda" a uma delas. Quanto à outra, ainda não me decidi por um insulto, mas estou inclinado para "boca de jacaré" porque ela tem um focinho comprido. O que vale é que elas não me percebem. :-)
Adiante. Gostei dessa variante do «não é bonito». Como se não ser bonito fosse sinónimo de ser feio. Acho que não. Acho que aqui não se aplica a Lei do Terceiro Excluído (que diz que "ou sim ou sopas" sem haver terceira possibilidade). Diria que há três classificações possíveis: 1) bonito, 2) nem bonito nem feio e 3) feio. Assim, "não bonito" significa "nem bonito nem feio ou feio", não significa "feio".
Agora imagina um gajo chato como eu, estudante de lógica matemática, a contestar a lógica das expressões da tua mãe. Achas que era uma luta de igual para igual? :-)
Jaime
www.blog.jaimegaspar.com
Lol.
O comentário do Jaime é muito engraçado!
A educação em geral e a paterna (leia-se paterna-materna), em particular, é sempre - ou quase sempre - no todo ou na parte, uma repetição do que foi a educação do educador. Não há escolas que ensinem a ser pai ou mãe! A escola é a da simples repetição, excluindo-se do acto educativo aquilo que o sentido crítico do educador admite excluir. Hoje em dia, deve acrescentar-se que a esta educação vem somar-se a do "grupo" onde o educando está inserido.
Assim sendo, há educações que se "viram para dentro" e as que se "viram para fora".
As que apelam ao "és feia" ou ao "o que vão dizer" são claramente educações "viradas para fora" face às quais o educando se vai tornar num indivíduo superficial e desajustado entre o "dentro de casa" e o "fora de casa".
A grande salvação, nestes casos, é a da acção da escola (quando obriga a "voltar e olhar para dentro" sobrepondo os valores da reflexão interior ao "parecer" social) e a do "grupo" (seja ele tomado no sentido amplo - roda de amigos - ou no sentido limitado - companheiro ou companheira de todos os dias).
Nestas coisas de educação é conveniente não esquecer que o Homem é um animal social e que, por conseguinte, se socializa até à morte, isto é, está sempre a mudar e corrigir comportamentos.
Eu, por exemplo, sou um incorrigível chato que tenho de teorizar tudo o que leio e, mais ainda, apontamentos tão lindos e "soltos" como este seu.
Uma vez mais, desculpe, mas acho que não me quero ver mudado.
neste contexto acho que a educaçao tem e sempre tera peso em nossa vida,o conceito de belo e de feio esta vinculado na maneira como cada um quer encarar as coisas. é uma subjectividade enorme mas a verdade é que o belo e o feio existem, tal como o bem e o mal. Diney Sá.
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