14/11/07

Dora



A tia Dorinha é uma mãe que eu podia ter tido.

Ela diz que sim, que sente uma ligação inexplicável entre nós, como se tivéssemos sido parentes muito próximas numa outra vida. E depois olha para mim com um ar sério, com os olhos bem abertos, mas eu não consigo evitar sorrir, porque a tia Dorinha foi feita para eu rir com ela, não para conversas sérias.

Ficou prometido há muito que escreveria sobre ela. E não é por tê-lo prometido que o faço agora, após mais de um ano. É porque ela merece. Mesmo que nunca venha a ler estas linhas, por falta de contacto com o mundo da blogosfera.

Dora foi casada com um irmão do meu avô, que foi para o Brasil no tempo da guerra. Casaram a primeira vez pela igreja e depois separaram-se. Mais tarde, voltaram a juntar-se e casaram novamente, dessa vez pelo civil. Mas a relação estava condenada e divorciaram-se pouco tempo após o segundo casamento. No final dos anos noventa, ele morreu. Mas a tia Dorinha continua firme, no seu apartamento do Leme, bem perto da praia, no coração do Rio de Janeiro. O coração dela, porém, não é dali, mas sim de Minas. Grande, generoso, aberto.

Eu não sabia de quase nada da vida dela, até ter ido passar uns dias lá a casa. Mas, mesmo assim, não consegui fixar muita coisa. Aquela existência é tão cheia de peripécias e aventuras improváveis, que só consigo reter alguns pormenores soltos. Para mim, o que fica depois de uma conversa é a ternura que emana da sua voz grossa, a expressão simpática e divertida dos seus olhos bem redondinhos e escuros sob a franja branca, a gargalhada franca da minha querida tia-avó distante, de cigarro numa mão e cerveja na outra.

E frases. Ficam-me frases como a do esparguete, que ela tirou da panela, enquanto cozia, e atirou contra a parede, por cima do fogão. Quando lhe perguntei porque fizera isso, explicou com graça espontânea: “Ué, quando tá bom, gruda!” Depois, a inevitável risada. E o contágio!

Dora... sempre surpreendente. Independente. Irreverente. Lembro-me, também, de ela me ter contado que um dia, anos depois da separação, resolveu casar com um americano. Quando se apercebeu de que as idas aos Estados Unidos implicavam incompreensíveis malabarismos burocráticos, desistiu do homem. “Eu ia ter que PEDIR para os Americanos, cada vez que queria ir lá?! Ora...!”

Quando ela veio cá a casa, comoveu-se até às lágrimas quando a minha filha, com três anos, lhe chamou “tiazinha”. Aquilo foi para ela uma adorável manifestação de afecto. É por essas e por outras que ela também gosta tanto de nós. E é tão bom ser “gostado” pela Dorinha... porque, mesmo sem nos falarmos durante meses, eu sei que ela pensa em nós com saudades.

Eu também penso muito nela com enormes saudades. Não gostava que ela vivesse aqui, porque então não seria aquela personagem vivaça e colorida, mineira de gema com gosto carioca. Mas gostava que ela viesse a Portugal mais vezes. Para me fazer sorrir com as suas grandes verdades sobre a vida. E para me fazer sentir um nó na garganta com aquela sugestão de que talvez já tenha sido minha mãe.

2 comentários:

Alecrim disse...

Este texto é tão bonito como essa tia. Eu não consigo comentá-lo, apenas deliciar-me com ele.

tikka masala disse...

Obrigada, querida amiga! A Dora é, de facto, uma pessoa que eu gostaria que toda a gente tivesse o prazer de conhecer.