O Vicente demorou, mas chegou.
O meu egoísmo natural de mãe redime-se na dedicação com que cuido deste ser tão frágil, tão vulnerável, tão completamente amoroso.
Inevitável pensar: “como é possível que alguém faça mal a um bebé?”
Se interessa para alguma coisa escrever e manter um diário virtual, esse interesse reside na possibilidade de ter quem responda e reaja às nossas confissões. Por isso, desde já agradeço todos os comentários!
Será por puro egoísmo que temos filhos? Ou será por ancestral obediência a um impulso ditado pela Mãe Natureza?
O primeiro foi a experiência suprema, a mais bela e incrível forma de realização pessoal que eu poderia ter vivido. “Já posso morrer, porque pelo menos já me continuei nesta filha” – não sei se me explico.
O mundo está uma desgraça, os danos são, em grande parte, irreversíveis e eu sempre pensei que era uma crueldade conceber crianças que, mais tarde, teriam nas mãos a dura tarefa de tentar emendar os nossos erros. “Mas o teu filho pode salvar o mundo!”, dizem-me os optimistas. “Não faz sentido deixarmos de ter filhos porque o planeta está em risco”. Ai não? Tenho as minhas dúvidas.
Ainda assim, não me fiquei pela primeira. O egoísmo é como uma placa de esferovite no mar da nossa mente: por mais que o empurremos para o fundo, está sempre a surgir à superfície. A desculpa mais imediata é comovente: ter outro, para que ela possa brincar, ter companhia, para que não sofra daquela solidão (egoísta!!) dos filhos únicos. E o planeta? O planeta... tem de aguentar, tem de esperar! E a educação deles passará obrigatoriamente pela sensibilização para a responsabilidade individual de todos: temos de ser nós a fazer alguma coisa.
E assim, o outro vem a caminho. Ao contrário dela, não foi concebido “sem querer”: foi desejado antes de ter existido, planeado para nascer na altura mais conveniente, concebido com plena consciência, porque cada tentativa poderia ser a ocasião solene da sua criação.
O segundo filho é, assim, para partilhar com ela. Não vem apenas cumprir a função de filho, vem também para ser irmão. Será amado por três, em vez de dois. Não saberá o que é ter a atenção exclusiva, o amor exclusivo da mãe, mas não sofrerá o abalo de ser destronado dessa posição privilegiada em que a primeira esteve durante mais de quatro anos. Como será, para uma criança, ter de amar alguém que lhe entra em casa pela primeira vez num dia qualquer, para lhe roubar espaço e carinho dos pais? Eu nunca soube qual o sabor dessa estranha conquista, que é talvez o primeiro grande passo de maturação. Mas intriga-me e entusiasma-me saber que vai ser hoje ou amanhã que começará o caminho. O dela, como irmã mais velha, e o meu, como mãe a dobrar. Mãe a dobrar-se. Mãe desdobrada. Mãe rendida à satisfação de se ver multiplicada.
Sou uma pessoa melancólica, pessimista, derrotista e queixosa, com uma forte tendência para me sentir vítima dos outros ou das circunstâncias. Fora isso, até sou bem humorada e divertida (acho).
A minha filha, até eu pasmo, está a ficar parecida comigo. Não sei se pesam mais os genes ou a convivência – provavelmente é uma mistura das duas coisas. Cada vez que ela se vitimiza, se queixa repetidamente de uma dorzinha de nada, faz um drama por causa de uma pequena contrariedade, chora sem uma razão válida (às vezes pelo prazer assumido de sentir as lágrimas a cair), vejo-me ao espelho.
Acho graça, por um lado, que ela seja assim, tal e qual como eu. Parece-me uma forma querida de Deus ou o Destino me mostrar os meus defeitos, para que eu procure melhorar. Mas nos dias piores, fico desesperada com essa parecença e tenho a certeza de que é um duro castigo, mais do que uma lição: “agora compreendes como sofre quem tem de te aturar?”
Depois, observo a minha mãe. Ouço-a queixar-se de coisas insignificantes, com tiques sonoros que denunciam de forma quase cómica esta nossa mania das lamentações. Critico em silêncio a forma como descreve tempestades a partir de copos de água e rio-me, porque ela me parece, não um espelho, mas a minha caricatura. Ou uma antevisão de como eu serei daqui a uns anos, quando esses traços se firmarem ainda mais. Finalmente, pergunto-me: será que ela também viu os seus próprios defeitos em mim?
As composições que os meus alunos escreveram este ano, sobre o tema da educação das crianças na sociedade de hoje, fizeram-me pensar. Foi uma experiência engraçada, sendo mãe, ler opiniões e “conselhos” – quase todos bem pertinentes e interessantes – de jovens que ainda não o são.
Depois de uma breve pesquisa na Internet, e tendo em conta a sua própria experiência como tios, amigos, vizinhos e estagiários em infantários, todas concluíam o mesmo: os pais de hoje tendem a ser demasiado permissivos e não hesitam em realizar os desejos dos filhos, quer estes sejam legítimos, quer sejam meros caprichos, para de certa forma os compensarem pela falta de tempo que passam juntos. É já um lugar comum dizer-se que estamos a assistir à passividade de uma geração de pais que obedecem aos filhos – uma opinião cujo teórico mais conhecido, para nós, Portugueses, talvez seja Javier Urra.
Eu, que tenho plena consciência dos erros que cometo – TODOS OS DIAS – com a minha filha, estou quase a ter outra criança. Ainda nem consegui remediar o mal que fiz até agora e já estou prestes a voltar ao início, certamente para repetir o padrão.
Há quem diga que reconhecer as próprias falhas é meio caminho andado para se melhorar. Mas eu não sou assim tão optimista. Embora não tenha o estilo de vida tão atarefado dos que não conseguem ser mais do que “baby-sitters” dos seus filhos, no ingrato horário das 20 às 8, o facto de trabalhar em casa leva-me, frequentemente, a dizer “agora não posso” quando ela me pede para brincar. Basta isso para que uma mãe se sinta culpada, penso eu, pela atenção que nega a um filho. E não é preciso mais do que algum dinheiro para depois lhes comprar uma felicidade enganadora, feita de brinquedos, ganchinhos, livros, jogos, bicicletas e roupa que, de forma alguma, contentam a criança.
Quando ela chega da escola e entra no seu quarto de sonho, olha em volta com indiferença e lamenta-se, aborrecida: “não tenho nada para fazer...!” E eu sinto uma pontada cá dentro que é mais do que frustração: é a plena consciência de que a culpa é toda minha e o castigo de ouvir isso é merecido.
Continuo a falar com ele, apesar de ele não me responder.
Gosto de lhe fazer festas, mesmo que ele só me saiba bater.
Até quando ele me causa náuseas eu não o censuro.
Eu faço tudo para que ele esteja bem e ele faz-me sofrer:
Cansa-me, faz-me alergias, tira-me o sono, dá-me varizes,
preocupa-me todos os dias...
Eu diria até que ele me está a envelhecer.
Mas eu adoro-o! O que hei-de fazer?
Se é assim o amor de uma mãe por um filho ainda não nascido...
imaginem quando vir o bebé tão querido!
O tema é delicado. Mas se eu não escrever nem falar, como hei-de desabafar?
É nestas alturas que detesto ser professora, quando os alunos vêm ter comigo para saber se há alguma hipótese de eu reconsiderar a nota que tiveram, como se fossem meros peões e eu andasse a brincar com a vida deles, atribuindo-lhes a classificação que me apetece. Quando me vêm explicar que tiveram problemas, alguns muito graves, e que por isso não puderam dar o seu melhor. Quando me confrontam com o facto de eu ter sido a única a dar-lhes nota negativa, como se isso me tornasse automaticamente – ainda que só um nadinha – injusta. Quando olhares suplicantes e caras tristes me parecem querer transmitir que, se falharam, é porque eu também falhei.
E sei que falhei.
Falhei em ter sido simpática, quando não é essa a função de um professor. Falhei em ter dado demasiadas oportunidades a quem as confundiria com facilitismo, falhei em ter acreditado que o respeito que me era devido não tinha de ser por mim cultivado. Falhei em não ter aprendido com a experiência anterior, em não ter mudado de atitude, como prometera a mim própria no início do ano. Falhei redondamente. É essa a conclusão a que chego sempre, mas todos os anos cometo os mesmos erros.