08/11/06

OSSOS DO PSEUDO-OFÍCIO


Há dias escrevi um poema sobre a frustração do professor. Não disse que era um poema, não escrevi a palavra poema no título, mas escrevi o texto com rima e métrica, para que tivesse uma musicalidade óbvia e fosse identificado como sendo, senão artístico, pelo menos pretensamente artístico.

Quando as pessoas o leram, reagiram ao conteúdo, assumindo que era um texto sobre a minha própria frustração. Bem sei que estava escrito na primeira pessoa, que foi publicado num blogue onde raramente se fala de outra coisa além de mim própria e do que sinto, que a maior parte dos leitores sabe que o sentimento ali descrito já foi por mim explorado noutros textos de carácter confessional, ou até mesmo desabafado oralmente.

Longe de mim criticar todas as pessoas que me consolaram e me deram bons conselhos, que me elogiaram e que me expuseram a sua perspectiva sobre o problema. Mas pergunto-me, no entanto, se aos poetas em geral também acontecem esses incidentes: escreverem um poema e virem os amigos pôr-lhes a mão no ombro, dizer-lhes que melhores dias virão. E sem querer comparar a minha débil escrita com a arte de Camões, fico a pensar se a ele também vieram dizer, a propósito de um soneto, que não ficasse triste, que a sua amada voltaria, ou que ainda estaria à sua espera quando ele voltasse.

Sem dúvida, o que define a literariedade de um texto não é uma qualidade intrínseca, nem será o estatuto do autor (porque algum texto há-de ter sido o primeiro, e no entanto foi reconhecido como sendo literário). Concluo que quem decide se um texto é ou não literário (neste caso, poético) é a comunidade de leitores. Assim se explica que o meu lamento tenha sido lido apenas enquanto lamento e que uma única frase, como esta: “Vou atirar uma bomba ao destino”, seja o poema número 42 na antologia Livro de Versos de Álvaro de Campos, mesmo que esteja inacabado, mesmo que o autor não tivesse pretendido escrever nem sequer a primeira linha de um poema, mesmo que tenha sido escrito num pedaço de pacote de açúcar abandonado num café.

5 comentários:

rascunhos disse...

pertinente observação...

Anónimo disse...

Para mim, o mais importante não são as coisas mas as pessoas. Penso que já me ouviu dizer isso.
Percebi que era um poema mas, no momento, tal não me pareceu importante...
Neste caso, os leitores deixaram-se ofuscar pelo sofrimento que todos os que foram ou são docentes, mais tarde ou mais cedo acabam por experimentar. É algo que nos diz directamente respeito.
Por outro lado, o universo de leitores que leu o seu poema/desabafo era muito diverso do normal. Não é a mesma coisa ler Fernando Pessoa, num livro, ou alguém que nos é próximo, num blog.

Maria João Resende disse...

É um excelente exemplo de como as ideias pre-concebidas limitam a nossa capacidade de observação, não nos deixando ver mais além. De facto, parecia um poema, tinha ritmo e rima de poema, mas este não é um blog de poesia, e tu não costumas (pelo menos desde que aqui venho) escrever poesia, e realmente falas normalmente de ti, e o poema parecia falar de ti, e o teu tema é o tema de muita gente - todos os que não somos professores já fomos alunos, pelo menos - logo a confusão é fácil. Mas deixa-me que te diga que tanto Camões como Pessoa seguramente gostariam de ver aquela quantidade de gente pronta a dar uma palavra amiga para ajudar! Estivessem eles vivos hoje, e tanta coisa seria diferente...
Apetecia-te reconhecimento, e levaste com compaixão! Não me parece má troca, mas para a próxima, quanto te apetecer reconhecimento, sê clara, não tenhas vergonha, escreve bem 'alto' POEMA, ou seja o que for.

tikka masala disse...

Obrigada pelos vossos excelentes comentários :D
Têm toda a razão, naturalmente. Mas não se esqueçam de que aquilo que aconteceu simplesmente me levou a pensar nos poetas (não é a mesma coisa que dizer que não apreciaram devidamente o meu texto!).
Optimist, eu escrevo poemas, mas costuma ser noutro blog: www.insidelookingin.blogspot.com

Vida de Praia disse...

Ora bem, uma das coisas que gosto neste teu blog é como leitora poder palmilhar contigo o registo emocional de trás para a frente e da frente para trás, e até mesmo "levar nas orelhas", se é para esse lado que estás inclinada ; )
Sobre a poesia, sou uma leitora muito ingénua, sabes: fico-me pelo "face value" das coisas (daí talvez nunca ter sido uma génia a literatura...hmmmm...). Imagino que o Camões deveras escrevia sonetos sobre o seu próprio sofrimento e as suas próprias paixões; idem sobre os sonetos de Shakespeare (a não ser, é claro, que os revisionistas que para aí andam consigam provar, que afinal quem escrevia por ele era Bacon & Co..., mas isto já é um aparte).
E quanto ao Álvaro de Campos, aliás, F. Pessoa, e aos seus ditos poemas, bem, nunca fui muito à bola com nenhum dos pseudónimos nem com o senhor do chapéu em si, e penso mesmo que se poderia discutir se uma frase é poesia. Enfim, isso cabe aos eruditos, que percebem da matéria, discutir; de qualquer das formas, sim, creio igualmente que aquilo de "atirar uma bomba ao destino" descreve um sentimento ou vontade qualquer dele.